Superlotação aumenta e número de presos provisórios volta a crescer no Brasil
Presos algemados por dias a viaturas em frente a delegacias por falta de vagas no sistema penitenciário. A cena, registrada na última semana em Porto Alegre (RS), é um retrato da realidade do país. Um ano após uma ligeira queda na superlotação, os presídios brasileiros voltaram a registrar um crescimento populacional sem que as novas vagas dessem conta desse contingente. O percentual de presos provisórios também voltou a crescer, mostra um levantamento do G1, dentro do Monitor da Violência, feito com base nos dados dos 26 estados e do Distrito Federal.
Desde a última reportagem do G1, publicada em fevereiro de 2018, foram acrescidas ao sistema 8.651 vagas, número insuficiente para acomodar o total de presos, que cresceu 3,2% em um ano, com 21.952 internos a mais.
Há hoje 708.546 presos para uma capacidade total de 415.960, um déficit de 292.586 vagas. Se forem contabilizados os presos em regime aberto e os que estão em carceragens da Polícia Civil, o número passa de 750 mil.
Os presos provisórios (sem julgamento), que chegaram a representar 34,4% da massa carcerária há um ano, agora correspondem a 35,6%.
Os dados levantados pelo G1 via assessorias de imprensa e por meio da Lei de Acesso à Informação são referentes a março/abril, os mais atualizados do país. O último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do governo, é de junho de 2016 – uma defasagem de quase três anos. Havia, na época, 689,5 mil presos no sistema penitenciário (e outros 37 mil em delegacias).
Em comparação aos dados colhidos pelo G1 em 2018, o novo levantamento revela que:
- o número de pessoas presas foi mais uma vez superior ao de vagas criadas
- a superlotação voltou a crescer: de 68,6% para 70,3%
- Pernambuco se manteve como o estado com a maior superlotação
- o percentual de presos provisórios foi de para 34,4% para 35,6%
- Minas Gerais virou o estado com a maior parcela de provisórios
Raio X das prisões no Brasil — Foto: Guilherme Gomes/G1
O Monitor da Violência, criado em 2017, é resultado de uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O G1, no entanto, faz levantamentos sobre a situação do sistema penitenciário brasileiro desde 2014. Desta vez, para que fosse possível fazer uma comparação também com o Infopen, foi pedido o número de presos que cumprem o regime aberto e que não demandam vagas no sistema. Também foi solicitado a todas as secretarias de Segurança Pública o dado de presos em carceragens ou delegacias de polícia.
Alguns estados, no entanto, não têm dados consolidados de presos em regime aberto, pois dizem que a responsabilidade do monitoramento dos sentenciados é da Justiça.
O que os números revelam
Para Camila Nunes Dias e Rosângela Teixeira Gonçalves, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, os dados mostram que “a política de encarceramento em massa que o Brasil vem adotando há décadas segue no trilho, firme e forte”.
“As prisões jamais – e em lugar nenhum do mundo – demonstraram eficiência em reduzir o crime ou a violência. Ao contrário, especialmente no Brasil e nas últimas três décadas, elas têm demonstrado o seu papel fundamental como espaços onde o crime se articula e se organiza, dentre outras coisas, através de um eficientíssimo sistema de recrutamento de novos integrantes para compor as redes criminais”, afirmam Camila Nunes Dias e Rosângela Teixeira Gonçalves, do NEV-USP.
Segundo Thandara Santos e David Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) indica que 37% das pessoas presas provisoriamente enquanto correm seus processos na Justiça não são condenadas à pena de prisão ao final do processo. “Se extrapolarmos a estimativa do Ipea para os dados de 2019, poderíamos estimar que existem, pelo menos, 93 mil pessoas presas injustamente hoje no Brasil.”
“Entre os eixos a serem considerados na engrenagem que move esse sistema superlotado encontra-se a relação estabelecida entre as polícias militares, responsáveis pelo patrulhamento ostensivo nas ruas e pela alta produtividade de prisões em flagrante, e o Judiciário, que tem reiteradamente optado pela manutenção dessas prisões”, dizem Thandara Santos e David Marques, do FBSP.
Para mostrar a realidade das prisões no país, uma nova parceria foi feita: com a GloboNews. Equipes foram a diversos estados do país (Amazonas, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo) e registraram o drama vivido.
Superlotação
Todas as 27 unidades da federação seguem com superlotação no sistema. A média geral do país é de 70,3% acima da capacidade.
O levantamento mostra que há hoje 56.641 vagas em construção no Brasil – o que não é suficiente, porém, para cobrir nem 1/5 do déficit atual.
O estado que tem os presídios mais superlotados do país é Pernambuco, mais uma vez. O estado esteve na primeira posição em todos os levantamentos feitos pelo G1 desde 2014 (com a exceção do de 2017). Hoje, o sistema está 178,6% acima da capacidade.
A situação nas principais unidades se agrava. No Complexo do Curado, formado por três presídios, é comum ver detentos amolando facões, consumindo drogas e falando ao celular. No presídio de Igarassu, na região metropolitana do Recife, presos dividem o espaço amontoados uns sobre os outros. O cheiro de urina é forte.
O presidente do Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária do estado, João Batista de Carvalho Filho, diz que quem manda nas cadeias são os “chaveiros”.
“ [‘Chaveiros’] são presos escolhidos por outros presos que têm poder e força de facções criminosas muitas vezes. Eles têm as chaves das celas e o controle dos pavilhões. O resultado é prostituição rolando, tráfico de drogas”, diz João Batista de Carvalho Filho.
“Hoje o carcereiro vive sob risco, em constante alerta. Há unidades com 200 presos por agente penitenciário. A figura do ‘chaveiro’ já confirma a omissão do Estado”, diz.
Para Edna Jatobá, coordenadora-executiva do Gabinete de Assessorias Jurídicas de Organizações Populares e especialista em segurança pública, há outros fatores que contribuem para a situação atual em Pernambuco. “Há a morosidade do Judiciário, a política de bonificação do Pacto pela Vida, que premia os policiais que mais prendem, e a dificuldade na porta de saída, de penas alternativas, por exemplo.”
Segundo a especialista, “é preciso que haja uma maior sensibilização dos juízes que atuam nas audiências de custódia, para entender que existem outras medidas à prisão, e um maior empenho dos profissionais nas Defensorias Públicas para conseguirem tirar as pessoas que precisam progredir de regime”.
“Chama a atenção o uso indiscriminado do instrumento da prisão como explicação para a diminuição da criminalidade. O sistema prisional está falido. Precisa de uma revisão enorme”, diz Edna Jatobá.
Segundo Pedro Eurico, secretário de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, a população carcerária aumentou porque a criminalidade se radicalizou no país.
“Há um processo nas franjas das periferias das grandes cidades, de um crescimento do crime, sociedades criminosas. Tudo isso colaborou para crescer essa população carcerária. Acho que tem também o problema dos presos provisórios. Infelizmente, acho que Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, até a Ordem dos Advogados, todos que estão dentro da relação processual, tem uma parcela de culpa. Todos temos que fazer uma mea-culpa. Nós prendemos e não julgamos”, diz Pedro Eurico.
Ele também defende que Pernambuco tem que focar em penas alternativas e no monitoramento eletrônico. “Eu sou entusiasta do monitoramento eletrônico. É uma questão simples, matemática. Enquanto um preso custa em média R$ 2 mil, R$ 2,5 mil, nos estados de baixo custo, um preso monitorado custa R$ 230. Depois, ele está perto da família. Não está no sindicato do crime, da morte, no qual se transformaram vários presídios no país.”
Na contramão
O Amazonas é um dos poucos estados que conseguiram reduzir o déficit nas prisões – e pelo segundo ano consecutivo. Após ficar na primeira posição entre os estados mais superlotados em 2017, o estado aparece agora na terceira posição, mas com uma situação ainda crítica, já que está com o sistema prisional 136,8% acima da capacidade.
André Luiz Barros Gioia, secretário-executivo adjunto da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, diz que medidas foram tomadas após o massacre que deixou 67 detentos mortos em três cadeias de Manaus – Compaj, Unidade Prisional do Puraquequara (UPP) e Vidal Pessoa – em janeiro de 2017.
“Como houve uma fatalidade, por uma decisão da Vara de Execução Penal, todos os casos foram analisados e presos foram retirados do encarceramento, do semiaberto, em que tinham que voltar para a unidade na parte noturna. Foram colocadas neles tornozeleiras”, afirma Gioia.
Ele acredita que o contingente de presos possa reduzir ainda mais depois da assinatura, neste mês, de um TAC (termo de ajustamento de conduta) com o Tribunal de Justiça para a adoção do sistema de audiências criminais por videoconferência.
A promotora Christianne Corrêa diz que há muitos desafios, mas vê uma melhora nos últimos anos. “Para quem acompanhou o que houve no massacre de 2017, em janeiro, e vê agora, já observa a evolução positiva do sistema prisional. O problema da superpopulação de presos condenados vem sendo trabalhado dia a dia com mutirões pelo Tribunal de Justiça e pelo Ministério Público. Mas a gente não pode dizer o mesmo em relação aos provisórios [que representam 45% do total]. Essa é a maior demanda hoje”, diz.
Provisórios, audiências de custódia e mutirões
Pela primeira vez desde 2015, o percentual de provisórios cresceu em relação ao ano anterior. Eles representam hoje 35,6% do total. São 252.533 presos aguardando um julgamento atrás das grades.
Minas Gerais é o estado com a maior parcela de presos sem condenação dentro dos presídios: 59,2%. A Secretaria de Estado de Administração Prisional de Minas Gerais informa que participa semanalmente das reuniões do Grupo de Monitoração e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), realizada com a presença do secretário da Segurança Pública e de Administração Prisional, juízes das Varas de Execuções de várias comarcas do estado e demais representantes do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública.
“As reuniões buscam estreitar o diálogo com todos os órgãos que trabalham diretamente com a justiça criminal, com a finalidade de buscar soluções conjuntas para as questões pertinentes ao sistema carcerário de Minas Gerais. Além disso, a Seap promove mutirões de atendimento jurídico. Nessa ação, são oferecidas orientações e informações acerca de benefícios, sentenças, recursos, datas de audiência, dentre outros. O objetivo do serviço é acolher e agilizar aquela que é considerada pelos presos a mais importante demanda de atendimento, o andamento processual.”
O TJ-MG diz que irá realizar um mutirão carcerário para novas providências.
Piauí, que esteve em 1º lugar nos últimos dois levantamentos, conseguiu reduzir o índice de provisórios de 65% em 2017 para 53% neste ano, mas o percentual segue alto. O subsecretário de Justiça do estado, Carlos Edilson, diz que foi preciso unir forças.
“Todo o sistema de justiça se reuniu. A secretaria passou todos os dados para a Defensoria Pública, que fez uma análise extramuros e partiu para dentro dos presídios para verificar in loco a situação de cada preso, já peticionando junto ao Poder Judiciário. O número só reduziu porque houve esse pacto envolvendo todos”, diz.
Segundo ele, esse trabalho foi feito, em um primeiro momento, na região metropolitana de Teresina. “Agora a gente vai para o interior do estado. E esse percentual tende a cair mais.”
Distrito Federal (com 20,4%), Rondônia (21,1%) e São Paulo (23%) são os três estados com o menor percentual do país.
Em São Paulo, a Secretaria da Administração Penitenciária diz que as audiências de custódia têm colaborado para a redução da quantidade de pessoas presas em flagrante no sistema penitenciário.
“A pasta atua em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio das Centrais de Alternativas Penais e Inclusão Social (Ceapis), as quais têm como funcionalidade o atendimento das pessoas encaminhadas pelo Poder Judiciário, após passar por audiência de custódia, para identificar demandas assistenciais, sociais e psicológicas, ligadas ou não ao delito cometido. As Ceapis surgiram em 2015 e atualmente contam com 23 unidades no estado. O atendimento ao público alvo nas Ceapis tem enfoque restaurativo e atua em conjunto com uma rede parceira, que colabora com o atendimento especializado para suprir certas carências que levaram o indivíduo a cometer o delito.”
Dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostram que, em pouco mais de dois anos, de 55 mil audiências feitas no estado, 26 mil (ou seja, quase metade) acabaram com a liberdade provisória do detento.
Presos em delegacias
Outro número que chama a atenção é o de presos em carceragens de delegacias. São pouco mais de 16 mil. No último relatório do Infopen, havia quase 37 mil nesses locais.
Praticamente todos os estados reduziram o número ou acabaram com os presos nas estruturas policiais. A exceção é o Paraná. O estado tem hoje 11 mil presos nas carceragens de polícia.
Para o promotor Alexey Choi Caruncho, do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública, o estado do Paraná vivencia há mais de uma década duas realidades distintas.
“Cerca de 2/3 estão nas penitenciárias e o outro 1/3 está nas delegacias de polícia. Então há uma realidade dentro das penitenciárias e outra no âmbito das delegacias, que estão muito mais superlotadas, com taxas de excedente altíssimas”, diz.
Os dados evidenciam isso. Se for levado em consideração apenas o sistema prisional, a superlotação no Paraná é a menor do país: 15,4%. As delegacias, porém, estão 61,8% acima da capacidade.
“É necessária uma gradativa redução dos presos em carceragens de delegacias. É preciso que toda a população prisional esteja submetida a uma única gestão, uniforme. Isso também irá desonerar a própria Polícia Civil. Fazer com que a polícia não precise se preocupar com presos, com cuidados como alimentação, visita, problemas como rebeliões.”
“Esse desvirtuamento das funções da Polícia Civil recai imediatamente na segurança da sociedade. Enquanto existirem policiais cuidando de presos, eles não poderão investigar. Não investigar significa impunidade”, diz o promotor Alexey Choi Caruncho.
Francisco Caricati, diretor-geral do Depen-PR, diz que isso será feito. “Desde a época do Império já havia o entendimento de que a pessoa que prendia não executava a pena. Havia essa separação. Por um motivo ou outro, as políticas penitenciárias que foram feitas no estado, até recentemente, recaiam sobre as cadeias públicas, principalmente no caso de presos provisórios. Mas agora há a política de absorver todos os presos no sistema, sendo eles provisórios ou condenados, e fazer todo esse trabalho que está sendo desenvolvido aqui no estado.”
“No modelo atual, a gente entende que, para contornar a questão de vagas no sistema penitenciário, não há outra alternativa a não ser a construção de novos presídios. É a medida paliativa para o sistema atual. No entanto, os programas que estão sendo implantados, da ressocialização de presos, com o tripé trabalho-educação-religião, visam, a longo prazo, que as vagas sejam cada vez menores”, diz.
No Amazonas, são mais de 1.400 presos nas delegacias – dado considerado alto. O governo diz que esses presos estão nos locais porque não há unidades prisionais na maioria dos municípios do estado. Mas afirma que a intenção é que, em breve, todos migrem para o sistema penitenciário.